– Só por desgraça é que a gente vive aqui, meu senhor!
Vieira, José Auguto, O Minho Pittoresco, vol. I, Lisboa: Livraria A. M. Pereira, 1886, p. 22.
A terra é fria e pouco fertil; as aguas d’uma deliciosa leveza e frigidas de neve. No inverno os castrejos, principalmente os da serra acima, abandonam as povoações do alto e recolhem as suas choças no fundo dos valles, as inverneiras, para as quaes transportam o seu limitado trem de cosinha, os instrumentos de trabalho, as roupas e os gados. Chegada a primavera deixam as suas casas de inverno e voltam para o alto.
As brandas e as inverneiras são vestígios dos estilos de vida e hábitos de comunidades outrora pobres e isoladas. Todas se assemelham pelas características próprias das regiões montanhosas que partilham e todas se distinguem pelas especificidades culturais que os diferentes recursos locais potencializam. Isoladas no meio hostil da serra, estas populações desenvolveram uma actividade agro-pastoril de sobrevivência, conseguindo manter até aos nossos dias uma identidade e uma cultura comunitária cuja origem se perde no tempo.
Um dos pilares desta actividade sempre foi a transumância, isto é, o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante uma parte do ano. Situada a mais de mil metros de altitude no extremo Norte do Alto Minho e de Portugal, Castro Laboreiro ofereceu desde os primórdios condições geográficas para que as suas populações desenvolvessem um tipo muito peculiar de transumância em que não são apenas os rebanhos e os pastores que se movimentam, mas todo o agregado familiar. Em meados de Dezembro, com a chegada do frio e dos nevões, os castrejos pegavam nas suas roupas, utensílios caseiros, alfaias e gado e deixavam as suas brandas para migrarem em massa para os vales, nos quais possuem uma segunda casa, uma segunda aldeia. É nessas inverneiras que ficavam, abrigados do frio, até meados de Março. A relativa sobreposição desse calendário migratório com as duas mais importantes celebrações católicas (o Natal e a Páscoa) conferiu ao longo de séculos um caracter simultaneamente telúrico e religioso a essa prática ancestral. O transumante é um peregrino.
Foi com este movimento pendular entre o planalto e o vale do Laboreiro que esta comunidade conseguiu singrar na desgraça (para usar a expressão da castreja que José Augusto Vieira cita na epígrafe), chegando a população a estabilizar muito perto do milhar de habitantes entre as décadas de 30 e 60 do século passado. O território de Castro Laboreiro encerra uma amplitude de altitude superior a 800m entre o ponto mais alto do planalto (Alto do Giestoso a 1340m) e Ribeiro de Baixo, que, como o próprio nome indicia, é a inverneira mais baixa do vale (a 500m). Apenas 18km separam estes dois extremos e o deslocamento das famílias com os seus bens entre uma branda e inverneira raramente ultrapassava metade desta distância para que a empreitada fosse feita a pé ao longo de um único dia. Não espanta por isso que esta terra tenha atraído e fixado populações há dezenas de milhares de anos, ou não tivesse Castro um dos mais ricos patrimónios pré-históricos do país, reunindo gravuras e pinturas rupestres, mais de uma centena de dólmenes e mamoas (datados de há 5000 anos) e cistas (monumentos funerários megalíticos).
O que sobra da transumância castreja hoje em dia? Do ponto de vista patrimonial, imenso. Do ponto de vista humano, muito pouco.
As brandas e as inverneiras continuam de pé, belas e dignas com os seus casarios, ruelas, aquedutos, capelas, fornos comunitários, colmeias e estábulos. A maioria das famílias optou há décadas por viver nas brandas, não apenas por ficarem mais perto da vila, mas porque as condições térmicas das casas melhoraram imenso e permitem suportar melhor o frio do planalto do que o estio do vale. Muitos filhos migraram como os pais, mas, contrariamente a eles, para nunca mais voltar. Algumas inverneiras converteram-se ao turismo através do alojamento local. Outras, não menos belas, estão abandonadas. A agricultura permanece quase por capricho, a pastorícia por despeito ou paixão. Contrariamente aos humanos, corços, javalis, raposas, coelhos, perdizes, corvos, aves de rapina, cavalos garranos e lobos jamais abandonaram estas terras e não se consta que sonhem com melhores paragens.
Mas a transumância sobrevive ainda na memória de uma geração envelhecida que fala dela com um misto de alívio e saudade. Temos a sorte de sermos vizinhos durante o Inverno da última família que ainda pratica esta variante castreja da transumância, alternando a sua primeira habitação em Curral do Gonçalo (branda) com a Entalada (inverneira). A Dona Raquelinda, pelos vistos, fala há anos em vender as vacas e se fixar de vez numa das casas. Mas, ano após ano, ela e o filho lá continuam este movimento perpétuo cuja inércia deve ser a mesma que fez fluir o sangue de gerações e gerações de antepassados não menos inquietos.
NOTA: a fotografia que abre esta entrada é uma panorâmica da inverneira Entalada a partir da EM1160.
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