I. O Roubo
No primeiro Domingo das férias grandes em Castro Laboreiro, fomos, como sempre, à vila buscar o pão de centeio que tínhamos encomendado à padaria de Pitões das Júnias. Quando lá chegámos, estranhámos haver tanta gente tão cedo de manhã em frente à igreja.
– Às tantas, vai haver missa… – disse o pai.
– Vejam! – alertou a mãe – Está a ali a Duartina!
A Duartina é a nossa benfeitora e castreja favorita. Foi ela que nos recebeu de braços abertos quando comprámos e começámos a restaurar a nossa casa numa inverneira. Parámos o carro e fomos ter com ela, furando a multidão que estava em grande comoção.
– Bom dia, Duartina! Que se passa? – perguntei.
– Ai meninos, que desgraça! Desapareceu da igreja a imagem de Nossa Senhora!
Mal acabou de nos dizer isso, ouve-se um carro a travar atrás de nós e sai de lá o presidente da junta que grita: “Minha gente, temos de ir todos ao Numão!”. A multidão ficou toda em silêncio durante uns segundos e depois dispersou em todas em direcções.
– Vamos, meninos, venham comigo que tenho ali o meu jipe!
– Mas que se passa no Numão? – perguntou o meu pai.
– Não sei… Quem sabe um milagre!
II. O Milagre
Durante a viagem, a Duartina pouco mais disse. Eu estava super-excitado, pois Castro costuma ser uma vila muito sossegada e a ideia de poder assistir a um milagre era ao mesmo tempo excitante e assustadora. O estradão que leva à capela do Numão era uma longa nuvem de pó tantos eram os carros que a percorriam.
Quando chegámos, a Duartina teve de estacionar ainda na estrada pois o descampado já estava com muitos automóveis. Havia uma pequena multidão a rezar e cantar hosanas virada para uma fraga onde, deu para perceber à medida que nos aproximávamos, brilhava uma estátua branca: era a imagem de Nossa Senhora.
– Milagre! Milagre!
III. A Lenda
– Reza a lenda que, há muitos anos atrás, tantos que ninguém sabe ao certo quantos, estava um pastor a passear o seu rebanho na isolada veiga de Numão, quando reparou numa luz a brilhar na concavidade de um rochedo altíssimo. Quando se abeirou, viu uma estátua de Nossa Senhora Mãe de Cristo e foi logo a correr contar a nova à população de Castro. Os moradores resolveram então levá-la para o centro da vila, onde foi muito adorada. Mas, no dia seguinte, a estátua desaparece!
Dava para perceber que a Duartina já tinha contada a lenda muitas vezes, mas que desta vez estava mesmo emocionada devido aos acontecimentos daquele dia.
– Um habitante – continuou ela com a voz embargada – veio então contar que vira uma águia gigante a pegar na imagem milagrosa com as suas garras e que a tinha levado em direção ao Numão. Ninguém queria acreditar, mas quando se dirigiram à veiga puderam então verificar que, milagre dos milagres, ela estava de novo pousada na mesma rocha como se fosse a pérola de uma concha!
– Que história incrível! – disse a mãe – Foi nessa rocha que ela reapareceu agora?
– Pois foi. Tornou-se então tradição levar a imagem duas a três vezes por ano para o centro da vila para que outras tantas vezes desapareça e reapareça no seu domicílio original. Os da vila, de tão repetidas fugas, entenderam que a Senhora gostava daquela veiga e, por isso, resolveram lá construir a ermida que agora ainda lá está. Quem lá for, pode ver a belíssima imagem e, com sorte, uma das muitas águias que parecem proteger aquele milagroso lugar.
– Então por que razão estava agora a imagem na igreja da vila? – perguntei eu.
– Porque ia haver uma procissão. Mas a Senhora resolveu voltar para o Numão sozinha.
– Sozinha ou então uma águia…
IV. O Acidente
– Tu acreditas em milagres, Pai?
– Nem por isso, filhote. Mas é importante respeitar as crenças dos outros.
Tinha sido uma manhã incrível. Roubos, milagres, lendas: um fartote! Com tanta emoção, quase que nos esquecíamos do pão! Estava a pensar nisso de regresso a casa, quando um jipe de matrícula galega nos ultrapassa a grande velocidade. Gosto muito de reparar nas matrículas dos carros e adoro jipes, mas o meu pai diz que são muito caros e gastam imenso gasóleo.
– Ele há cada palerma na estrada – queixou-se a mãe.
Logo a seguir, ouvimos um grande ruído. De repente, um pedregulho gigante rebola da encosta do Castelo e aterra com estrondo em cima do capô do jipe que nos tinha ultrapassado! O pai trava, gritamos todos, ouve-se os pneus a chiar no asfalto e paramos a poucos metros do jipe que tinha o motor todo desfeito a fumegar. Quando fomos espreitar, estava tanto o condutor como o passageiro muito queixosos e nervosos, pois apesar de não aparentarem estar feridos, não conseguiam sair do carro.
– ¡Por favor sácanos de aquí! – disse um deles.
– Não se mexam, por favor! – respondeu o meu pai – Vou já chamar uma ambulância!
Felizmente, havia na vila uma ambulância e uma patrulha da GNR de Melgaço por causa da procissão e ambas chegaram ao acidente em poucos minutos. Eu estava simplesmente eléctrico! Que mais nos iria acontecer hoje?! Foi depois de desencarcerar os galegos que continuavam muito nervosos, que os agentes repararam num cobertor suspeito enrolado no banco de trás. Quando o abriram, o que encontraram? A imagem de Nossa Senhora!
– Ah seus bandidos! – disse logo um dos guardas – Vão daqui diretos para a esquadra de Melgaço!
Afinal tinham sido eles a roubar a preciosa estátua e a colocar uma réplica no Numão. Com a comoção do suposto “milagre”, ninguém da população reparou que a imagem era falsa e desprovida da valiosa folha de ouro do original. Fiquei com alguma pena, pois a ideia de assistir a um milagre era, apesar de tudo, mais emocionante do que a resolução de um crime.
– Quem sabe se não foi um milagre aquele pedregulho ter caído em cima deles? – disse a mãe – Se não fosse isso, eles já estariam por esta hora em Espanha com a imagem!
Foi então que olhei para o céu e vi uma águia gigante a planar no ar.
(Texto cujo enredo foi tecido a meias com o Joãozinho, que anda a ler os livros da Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada)
Milagre os galegos não apanharem com o calhau na tola!