Colmeia(s) – III

Esta entrada tem um prelúdio triste: morreram as abelhas de uma das nossas duas colmeias. Começámos a desconfiar há cerca de três semanas. Apesar de a actividade de ambas no Inverno ser praticamente nula, a verdade é que reparámos que uma delas (paradoxalmente a menos populosa) aproveitava qualquer nesga de sol para trabalhar, enquanto que da outra não se via qualquer abelha. Na semana seguinte, resolvi investigar e o cenário foi terrível: no fundo da colmeia, estava a totalidade do enxame morto. Não sabemos a razão para tal, mas apontamos talvez para o frio pois a colmeia em causa é a menos protegida, não apenas por ser a que está mais a Norte, mas também por ser de contraplacado e não de madeira. Alguma doença também é possível, mas não encontrámos qualquer vestígio de varroa no ninho. Apesar de continuarmos (como sempre) apreensivos que algo possa acontecer à outra colmeia, tem havido nas duas últimas semanas de sol um vai-vem constante de abelhas a entrar e a sair, pelo que continuamos esperançosos.

Temos colmeias não por causa do mel, mas porque aprendemos rapidamente a adorar as abelhas, porventura os mais fascinantes arautos deste pedaço de paraíso. Se todos os anos os enxames sobreviverem às intempéries sem sobrar um pingo de mel nas alças, seremos um trio de apicultores felizes. Albergar abelhas, já deu para perceber, é uma mistura fascinante de alegrias, desilusões e tristezas e só espero que, com o tempo, possámos ser capazes de dar as melhores condições para que este importantíssimo habitante da Entalada possa prosperar no nosso quintal. Oxalá a gente consiga. Para já, há planos para trocar a colmeia por uma de madeira e arranjar forma de as proteger do lado setentorial.

Após o choque inicial, tentei pegar na colmeia, mas a mesma parecia pregada ao chão. Pedi ajuda à Manela e foi a muito custo que conseguimos carregá-la até ao pátio das traseiras. A razão era simples: os quadros estavam repletos de mel. Depois da perplexidade, resolvemos rapidamente honrar a colmeia improvisando uma cresta que, não vale pena negá-lo, teve tanto de invernal como de fúnebre. Foi um processo emotivo no qual fomos bastante trapalhões: calculo que apenas se tenha retirado metade do mel, porque rapidamente percebemos que as abelhas da outra colmeia estavam também a se alimentar dela. Depois de retirar o nosso quinhão do ninho, colocámos a colmeia no meio do quintal para que as abelhas reclamassem o seu.

Dentro de casa, as coisas serenaram um pouco e a emoção ganhou novas tonalidades. Entregamo-nos à longa tarefa de separar o mel da cera dos favos, utilizando para isso o calor da lareira (que torna o mel mais líquido) e dois crivos. Enquanto isso, não deixava de me perguntar se haveria coisa mais assombrosa do que esta substância alada feita de flores, sol e vida. Reparei que o nosso filho também estava fascinado e que tratava o produto do labor das abelhinhas com aquela cautela e veneração que apenas dedica às coisas que ele ama de forma por vezes arbitrária e surpreendente.

De regresso a Canidelo, deixámos o mel repousar durante dois dias para que os vestígos de cera viessem à tona. Retirámo-los depois cuidadosamente com uma colher e pesámos o conteúdo do balde: 4,060kg. Esterilizámos no forno todos os frasquinhos que tínhamos (de 250 e 60g) e com muita paciência enchêmo-los da substância divina, tentando reduzir ao máximo o desperdício. Foi só aí que percebemos que o mel tinha uma cor mais clara do que inicialmente pensávamos. Se tivermos em conta a flora da Entalada, ele será composto de pólen de flor de caravalho, urze e tojo, mas também de lavanda e rosmaninho, que são as plantas que preenchem o nosso jardim da frente e que as abelhas adoram frequentar. Foi então que provei o mel pela primeira vez e posso afirmar, sem exagero, que é a coisa absolutamente mais doce que já tive na minha boca, mas sem ter aquele travo agressivo do açúcar que tanto me repulsa. Não sei muito bem como explicar isso, mas é como se aquele mel me desse a entender que a doçura pode ser mais branda, mas paradoxalmente mais intensa. Uma doçura larga, sem picos, toda ela planalto. Sabe a flores, claro, mas também a madeira. Perfume e luz. E, sempre que o provo, não deixo de sentir uma imensa gratidão.

O mel também é família e amigos. Comunidade e comunhão. O nosso pequeno enfeitou com a sua bela caligrafia os rótulos dos frasquinhos e elaborámos de imediato uma lista das pessoas a quem queríamos oferecer o Mel da Entalada (marca não registada). Confesso que éramos para oferecer a mais pessoas, mas começámos a nos afeiçoar tanto pelo mel que resolvemos ficar com um inventário que possa permitir uma celebração mais prolongada.

Agora é esperar pela Primavera e pela época dos enxames. Não vejo a hora de ter uma nova colmeia no quintal.

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