Colmeias – V

Os eucaliptos em Castro Laboreiro são o que deveriam ser em todo o país: uma raridade. Conheço-os bem, precisamente por serem raros e exóticos e se destacarem do resto da paisagem dominada pelos carvalhos: há um par deles gigantescos junto ao aqueduto da aldeia de Pontes e outro mais esquivo à entrada da aldeia da Dorna (pode haver mais, claro, mas ainda não dei por eles). Na passada terça-feira, fui ao encontro do da Dorna com a Natália (amiga de infância da avó Manela) no intuito de apanhar algumas folhas e frutos para preparar umas inalações que acalmassem a rinite alérgica do pequeno. No regresso, cruzámo-nos com a vizinha Ermesinda:

– Boa tarde! A passear pela fresquinha?
– Boa tarde! Tem de ser. Já estão cá a passar as férias?
– Ainda não, viemos hoje porque amanhã vamos crestar.
– Ah, também têm colmeias?
– Sim, três. Vamos crestar a alça do enxame que apanhámos o ano passado. As outras duas são deste ano.
– Ah que bom, também já tive uma colmeia.
– Onde? Aqui na Entalada?
– Sim, na varanda de casa, veja lá. E não incomodavam nada.
– Acredito.
– E houve um ano em que tirei 8kg de mel da alça!
– Ena ena! Com um quilito da minha já ficava contente…

Tinha decidido vir à Entalada no fim-de-semana passado quando soube que a nossa benfeitora Duartina ia crestar as suas colmeias. Como ela tem um extractor eléctrico, seria uma excelente oportunidade para fazer a nossa cresta com o auxílio de tão valioso apetrecho e sob a supervisão de uma apicultora tão experiente. Combinámos que a empreitada se faria na quarta-feira seguinte e que estaria lá com a alça pelas 11h na vila.

Como já referi anteriormente, apenas tínhamos uma cresta no currículo: uma cresta que, para além do mais, fora bastante monótona e tristonha na medida em que o mel era proveniente do ninho do enxame que nos morreu em fevereiro (esse é mesmo o único caso em que se cresta o mel do ninho de uma colmeia). Por isso, mal ficou decidida a data da empreitada para a colmeia que sobreviveu ao Inverno, senti um misto de frenesim e ansiedade que não me largariam até o fim da manhã do dia 24 de julho de 2024 (uma data para mais tarde recordar). Como a Manela só entra de férias em Agosto, apenas poderia contar com a ajuda do pequeno que ficou muito excitado com o plano traçado, não tivesse ele, na semana anterior, experimentado pela primeira vez com grande bravura o fato de apicultor da mãe. Para tornar a coisa ainda mais animada, quis o acaso que a nossa missão coincidisse com a estadia da avó Manela e da Natália na Entalada: poderiam assim assistir à nossa mais do que expectável falta de jeito para levar a bom-porto tão iniciática tarefa.

Chegado o grande dia, eu e o Joãozinho levantámo-nos cedo (6h30) e começámos a preparar tudo para a cresta: fatos, luvas, botas, cavalates, contraplacado, fita-cola preta, uma alça com quadros de cera nova, fumigador, raspador e levanta-quadros. Dava para perceber que o pequeno estava tão nervoso quanto eu e que ambos estávamos conscientes que apenas poderíamos contar com o outro durante a operação. Como já estava bastante calor (25 graus), só depois de acender o fumigador é que nos vestimos e calçámos.

– Estás pronto, João?
– Sim.
– Já sabes: vamos fazer as coisas com calma e sem ter medo das abelhas que não nos podem picar por causa do fato.
– Sim.
– E é normal que daqui a pouco haja centenas de abelhas à nossa volta.
– Sim.
– Mas não tem mal.
– Sim.
– Por sim, queres dizer não, certo?
– Sim.
– Vai ser giro, vais ver.
– …
– Vamos a isso?
– Sim, caneco! Já liguei a Go-Pro.

Comecei por destapar a colmeia e tirar a alça com a ajuda do raspador. Pego nela, pesa imenso, e coloco-a em cima dos cavaletes. Tinha imaginado que conseguiríamos afastar as abelhas que estariam na alça e levá-la assim intacta para a vila. Ao fim de alguns minutos, percebo que vai ser mais complicado, e que vou ter mesmo de usar o levanta-quadros para chegar às abelhas que estão agarradas aos favos de mel. Vou buscar mais uma alça vazia e começo a fazer o que deveria ter feito desde o início: tirar, um a um, os oito quadros da alça da colmeia para os colocar na alça vazia, não sem antes afastar todas as abelhas de cada quadro com a ajuda de uma vassourinha e das certeiras baforadas do fumigador que o Joãozinho vai manobrando com mestria.

Num ápice, forma-se à nossa volta uma nuvem gigantesca de abelhas furiosas. Já sabia que o enxame era numeroso, mas como a manhã ia alta, tinha a esperança que a maioria estivesse nos campos a colher pólen. Pego na alça com os quadros com cera nova e pouso-a em cima do ninho a transbordar de mel. Tudo impecável, nenhuma baixa a registar nas abelhas quando tapo a colmeia. Mais umas baforadas de fumigador afastam as últimas abelhas da alça para onde tinha colocado os quadros com os favos. Selo-a com duas tábuas de contraplacado e umas tiras de fita-cola preta. Começo a respirar fundo quando o pequeno me diz que tenho o fato mal fechado e que tenho

– Uma abelha dentro do fato!
– O quê?! Tens a certeza?!
– Sim, pai, estou mesmo a vê-la em cima da tua orelha!
– Ai ai.

Corro para debaixo da varanda, tiro as luvas e o fato, solto a abelha infiltrada, torno a vestir o fato todo encharcado de suor, calço as luvas e voltamos à carga. Já fui picado pelas nossas abelhas meia-dúzia de vezes no último ano, mas estava escrito que naquele dia, e contra todas as probabilidades, sairíamos ambos incólumes. Olho para o relógio: 10h50. Está cada vez mais quente. Embrulho a alça num lençol (não fosse sair de lá alguma abelha que tivesse escapado à purga), coloco-a na carrinha e arrancamos em direcção à vila. Quando chego às colmeias da Duartina, aparece-me a bendita com um ar consternado:

– Pode dar já meia-volta que o extractor não funciona!
– Não me diga!
– Digo, digo. E digo-lhe mais: não tenho mel nas alças.
– Que pena, caramba… E agora?
– Agora venha daí com a sua alça.
– Para onde?
– Para a casa do meu irmão que ele tem lá um extractor manual.

Nessa altura, já deveriam estar 35 graus e continuava de galochas e fato a suar que nem um alucinado. Toca a carregar a alça novamente para a carrinha em direcção à aldeia do Teso, onde o irmão da Duartina:

– Eu mostro-lhe como se faz, mas depois são vocês que trabalham!
– Claro, senhor António. Muito obrigado!
– Deixe lá ver a alça.
– Aqui está.
– Ui, só pelo peso, diria que tem aqui mais de 5kg de mel, homem!
– A sério?!!

As contas são relativamente fáceis de fazer. Em média cada quadro de uma alça de colmeia Langstroth consegue conter 1kg de mel. Os 8kg crestados há anos pela vizinha Ermesinda eram admiráveis por, supostamente, equivalerem à capacidade máxima de uma alça (8 quadros x 1kg = 8kg). O António, pareceu-me, estava a ser optimista ao estimar que teria mais de metade dos favos fechados repletos de mel. Se tivesse dois quilitos, já ficava todo contente.

Esta segunda fase da cresta é mais social e bem menos estressante. De repente, éramos quase uma dezena de pessoas na adega do António. O Carlos e o Jonathan, filho e neto da Duartina, também já se tinham juntado a nós. Aprendi rapidamente a desopercular os favos fechados com um facalhão para libertar o mel e a manobrar a prodigiosa geringonça que, através de uma manivela, engendrava um movimento circular cuja força excêntrica expulsava o mel dos favos como se nada fosse. Depois, era virar os quadros e repetir a operação. O ambiente era descontraído, todos se riam da minha falta de jeito e dava para ver que os anfitriões estavam genuinamente assombrados com a quantidade de mel que havia nos quadros.

Foi também nessa altura que provei pela primeira vez o mel. Absolutamente delicioso. E com uma cor (mais escura) e sabor (menos floral e com um travo a madeiras) distintos do mel do ano passado, o que demonstra como as cambiantes do clima e da flora (tojo, urze, carvalho, alfazema e rosmaninho) conseguem criar um fascinante leque de texturas, aromas e sabores no mel da Entalada. No final da cresta, o Carlos actualiza a previsão inicial do tio: teria ali mais de 7kg na boa, pois apenas metade de uma face de um dos quadros não tinha os favos repletos de mel. Agradeço e despeço-me deles a levitar.

Quando regressamos às nossas colmeias na Entalada, não resta qualquer vestígio do caos que tínhamos deixado e as abelhas já tinham todas regressado à sua rotina habitual. Tenho ainda uma derradeira tarefa a levar a cabo por indicação do António e da Duartina: substituir os quadros com cera nova que tinha colocado na alça pelos originais já com cera puxada, pois tal potenciaria uma segunda cresta no final de Setembro. Apenas me custa vestir o fato (o termómetro cá fora indica 37 graus à sombra) pois, para grande supresa minha, procedo à substituição dos quadros com imensa calma e prazer.

Chegámos a Canidelo no final do dia exaustos. Estava super-orgulhoso do nosso pequeno: não apenas me ajudou imenso, como deu para perceber que as peripécias daquele dia lhe tinham enchido o coração. Quando, no final da manhã, ainda na Entalada, tirou o fato de apicultor, teve de imediato um inesperado ataque de choro e agarrou-se a mim:

– Está tudo bem pai.
– Faz sempre bem chorar.
– Está tudo bem.
– Óptimo. Fui eu que te falei de forma mais ríspida?
– Não. Está muito calor. (Risos)
– Mas foi muito fixe, não foi?
– Foi. (Suspiro)
– Difícil, mas fixe.
– Muito.
– Foste um valente.
– Tu também.

Em casa, esperavam-nos, impacientes, a Manela e a avó Adozinda. Fizemos um resumo polifónico das nossas aventuras e elas pareceram muito impressionadas com o relato e a quantidade de mel que tínhamos no balde. De seguida, coámos as películas dos favos que tínhamos aberto com o facalhão e colocado num recipiente mais pequeno. No fim do dia, adicionámos esse derradeiro resíduo de mel ao balde que trazia o ouro líquido que havia sido crestado e, por fim, já só pensávamos nisso há horas, fomos buscar a balança.

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